Como são as carreiras em um "mundo líquido"

Renato Bernhoeft cita passagens de pensadores como o sociólogo Zygmunt Bauman e o cineasta Woody Allen para refletir sobre a sociedade contemporânea

Colunista recorre à filosofia de Bauman para reforçar que as referências, exemplos e modelos do passado estão perdendo sua validade a cada dia — Foto: Unsplash

O título deste artigo exige alguns esclarecimentos. A palavra "carreiras", no plural, foi escolhida para provocar uma reflexão que vai além do universo do trabalho. A proposta é pensar em carreira como o conjunto dos papéis que desempenhamos ao longo da vida: profissional, conjugal, familiar, social, educacional e individual. Cada um desses papéis exige planejamento, escolhas e responsabilidade, especialmente em tempos de rápidas transformações.

O termo "mundo líquido" também merece explicação. Ele foi criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, ao descrever uma realidade marcada por mudanças constantes, incertezas e instabilidade. Vivemos em um contexto onde as certezas de ontem já não se sustentam hoje. Bauman nos alertava para isso bem antes da pandemia, que apenas agravou e acelerou esse cenário.

Para quem se preocupa com seu projeto de vida, é essencial reconhecer que os modelos e referências do passado estão deixando de servir como guia. Ou, no mínimo, precisam ser revistos com um olhar mais crítico e adaptado aos novos tempos. Bauman dizia:

"No ambiente líquido-moderno, a luta contra os medos se tornou tarefa para a vida inteira, enquanto os perigos que os deflagram – ainda que nenhum deles seja percebido como inadministrável – passaram a ser companheiros permanentes da vida humana."

Um exemplo que ilustra essa mudança está no universo do consumo. Antes da pandemia, campanhas publicitárias incentivavam frases como "não deixe para depois o que você pode fazer agora", muitas vezes associadas ao consumo impulsivo, especialmente com o uso de cartões de crédito. Hoje, há um movimento crescente de valorização da consciência financeira, da prevenção e do planejamento para o futuro. A pandemia reforçou a necessidade de refletir antes de agir, seja na vida pessoal, profissional ou econômica.

Essas mudanças, ainda que pareçam simples, têm valor didático. Elas ajudam especialmente aqueles que não têm o hábito de refletir periodicamente sobre seus valores, escolhas e estilos de vida.

Outro ponto importante levantado por Bauman é a crítica à ideia de destino como algo imutável. Para ele, "a ideia de destino implica não tanto a natureza dos golpes que a vida traz, mas sim a incapacidade humana de prevê-los, preveni-los ou controlá-los." Em outras palavras, assumir o controle sobre a própria trajetória é mais necessário do que nunca, mesmo que isso signifique enfrentar a ansiedade e a insegurança.

Já o cineasta Woody Allen, de forma provocadora, escreveu: "Mais do que em qualquer outro momento da história, a humanidade está diante de uma encruzilhada. Um caminho leva ao desespero e à impotência absoluta. O outro, à total extinção. Rezemos para que tenhamos a sabedoria de escolher corretamente." Ainda que irônico, o trecho traduz a sensação de paralisia e urgência vivida por muitos.

O psicanalista Erich Fromm, por sua vez, no clássico "Medo à Liberdade", falava da dificuldade que as pessoas têm de lidar com a liberdade real, que exige escolhas conscientes, sem dogmas, gurus ou promessas fáceis. Em uma sociedade ansiosa, assumir responsabilidades sobre a própria vida pode ser assustador, mas é um passo essencial.

E, por último, mais um alerta de Bauman: "O terreno sobre o qual repousam nossas perspectivas de vida é reconhecidamente instável e movediço, da mesma forma que nossos empregos, nossas empresas, nossos relacionamentos, redes de amizade, a posição que ocupamos na sociedade e a autoconfiança que a acompanha."

Em tempos de longevidade crescente e baixa natalidade, esses desafios ganham ainda mais peso. A cada dia, torna-se mais necessário que cada pessoa assuma, com coragem e lucidez, o protagonismo da própria vida, em todas as suas dimensões e carreiras.

matéria publicada no jornal Valor Econômico: https://valor.globo.com/opiniao/renato-bernhoeft/post/2025/07/como-sao-as-carreiras-em-um-mundo-liquido.ghtml