Compreender a origem das empresas ajuda a entender de onde elas vieram e, o mais importante, a construir o seu futuro
Por Renata Bernhoeft e Wagner Teixeira
O nascimento de um empreendimento, na maioria dos casos, está relacionado a duas características marcantes do fundador: instinto positivo de sobrevivência e motivação empreendedora. O perfil do empreendedor é evidente, antes mesmo da existência de uma empresa. É muito cedo, a partir de algumas opções, nas quais já se pode notar que está nascendo um empreendedor. Isso acontece quando alguém escolhe: depender de si mesmo em vez de depender dos outros, apostar em uma ideia a trilhar caminhos já percorridos, abraçar a incerteza à estabilidade, buscar trabalho em detrimento de emprego. Exatamente por estas características, não pode ser considerado um empreendedor aquele que visa somente ao enriquecimento pessoal. Inúmeros empreendedores relatam histórias de infância e adolescência, em que já se notam a manifestação destes traços. O empreendedor é alguém motivado pela autorrealização, pelo desejo de assumir responsabilidades e ser independente. Em todo o mundo já se realizaram um sem número de pesquisas com o intuito de identificar características comuns às pessoas de sucesso e, em todas elas, o empreendedorismo – aquela motivação, aparentemente incansável, para realizar – surge como uma característica básica. Esse é o desejo que leva as pessoas a acreditarem em seus projetos, serem apaixonadas pelo que fazem e estarem sempre em busca de melhorar suas habilidades menos desenvolvidas e aprimorar as mais fortes, uma forte motivação empreendedora. O psicólogo norte-americano Walter Cannon afirma que, por questões de sobrevivência, a mente humana está condicionada a uma resposta primitiva, que tende a perceber o ambiente como possível ameaça, entrando nos modos: fugir ou atacar. A consciência fica presa no medo, fechada para outras alternativas que não estas duas. Para que pudéssemos avançar na trajetória da humanidade, criamos uma base de pensamento com foco naquilo que nos ameaça, e que marcou o olhar primordial do ser humano. Nossa base histórica que nos leva a reagir é o medo, não o prazer, e por isso estamos sempre prontos para o pior. As pessoas de sucesso são aquelas que conseguem mudar esse foco, desenvolvem um instinto positivo de sobrevivência. Em vez de esperar pelo pior, sentem-se responsáveis por fazer algo melhor. Aqui se enquadra a maioria dos fundadores, pessoas que com a adversidade buscaram motivação para crescer. Podemos mudar o foco apenas com nossas próprias forças, porém, isto é um desafio que poucos conseguem solitariamente.
PERFIL DO EMPREENDEDOR A predisposição para essa mudança de foco foi identificada ainda nos anos 1960 pelo psicólogo Julian Rotter, que a chamou de lócus de controle, e a dividiu em lócus de controle interno e externo. De acordo com Rotter, algumas pessoas têm como característica predominante assumir o seu próprio destino e se considerar as maiores, e muitas vezes únicas, responsáveis pelo resultado de suas escolhas, são as que têm o lócus de controle interno mais acentuado. Numa adaptação sugerida: posicionamento interno, característica que define os empreendedores, assumindo que são os líderes de seu próprio destino. Na outra ponta estão as pessoas que acreditam na ação de forças externas sobre suas vidas. Para estas, o destino, a sorte, o azar, Deus ou até a atitude de qualquer outro indivíduo pode determinar suas vidas. São pessoas que têm o lócus de controle externo mais ressaltado. Numa adaptação: posicionamento externo, onde o indivíduo sente que não influi em sua própria sorte, tudo já está escrito e não há como mudar. As percepções sobre a origem do controle exercem variadas influências sobre o comportamento das pessoas. Para as que têm a predominância do posicionamento externo, suas próprias habilidades e ações não exercem muita influência nos reforços que recebem. Elas se convencem de que não têm poder sobre fatos ou pessoas, e, por conta disso, atuam numa postura de conformismo, justificativa ou acomodação. Já as que têm a predominância do posicionamento interno, acreditam ser responsáveis pela própria vida e, por conta disso, agem proativamente. Para Rotter, o lócus de controle é adquirido na infância por meio do comportamento dos pais e dos responsáveis pela criação, uma espécie de padrão de referência. David McClelland, também psicólogo, ampliou os estudos de caráter científico sobre a possibilidade de desenvolvimento do lócus de controle interno aplicado à formação de empreendedores. Também nos anos 1960, McClelland já havia identificado traços psicológicos essenciais aos empresários de sucesso e afirmava que estes poderiam ser desenvolvidos. Para provar sua teoria, o psicólogo realizou um amplo estudo, por meio do qual identificou dois pilares que estão na base do comportamento empreendedor. O primeiro pilar resulta em “necessidade de realização”, “motivação para a excelência” ou “impulso de melhoria”, e é caracterizado por certa insatisfação com o presente e o desejo de superar padrões de excelência. O segundo pilar refere-se ao lócus de controle que, na prática, responde à questão: quem é responsável pelo que me acontece? A prevalência do posicionamento interno, somada à insatisfação, as necessidades de realização e de sobrevivência, distinguem o comportamento dos empreendedores. Essas pessoas comportam-se de maneira bastante distinta das que possuem o lócus de controle externo. O sujeito com o posicionamento interno acredita que o sucesso é, antes de qualquer coisa, fruto de seu olhar com foco em oportunidades, planejamento, esforço intenso e talento. Obviamente isso deve ser equilibrado, pois até o excesso de lócus interno pode causar disfunções comportamentais sérias. Quando equilibrados, é nos indivíduos com lócus de controle interno que, segundo McClelland, se observa uma iniciativa incomum e um controle maior sobre seu próprio comportamento, marcado por características como: - São mais bem-sucedidos quando se trata de persuadir pessoas, embora eles próprios não se deixem persuadir facilmente; -São disciplinados e obstinados na busca de informações e conhecimento que influencie seu objetivo, tornam-se mais bem informados que a média geral das pessoas; - Desempenham bem tarefas que dependem de habilidades específicas que podem ser aprendidas, e não tão bem aquelas que dependem do acaso: são mais dedicados do que essencialmente brilhantes; - São mais autoconfiantes, resilientes e menos vulneráveis ao fracasso, dedicados e dispostos a fazer o esforço extra, sem enxergar nisso um sacrificio. São estas características empreendedoras que compõem o DNA de origem de uma família empresária, uma espécie de linhagem comportamental que precisa ser preservada e transmitida para as gerações futuras. Obviamente haverá desafios. Daí a necessidade de que a disposição e a fibra – o lócus interno, ou a capacidade de empreender – dos fundadores sejam resgatadas, transmitidas e desenvolvidas nas gerações de herdeiros. A preparação exige criar as bases para o futuro da família empresária, reforçando os padrões de referência, alinhando a história, conceitos e valores para que sejam transmitidos às próximas gerações. Por outro lado, os empreendedores também têm em comum o fato de não pensarem em seus projetos pessoais além da empresa. Eles trabalham, constroem impérios e, quando atingem patamares de estabilidade, não sabem o que fazer. É frequente o discurso de que alguns fundadores poderiam curtir a vida e não o fazem. O fato é que não sabem e, por isso, precisam ser ajudados a descobrir o que lhes dá prazer, além do trabalho. Os fundadores também necessitam pensar no legado que deixarão para a família, o que significa pensar o futuro além do negócio. É preciso deixar as portas abertas para se discutir o real significado da vida e o que os membros da família realmente querem para si. Se uma pessoa da família não estiver bem, isso vai afetar a todos. É importante que todos busquem sua realização.
DESENVOLVER A CADA GERAÇÃO Além do posicionamento interno, o ambiente onde o empreendedorismo vai brotar também é importante, e cabe às famílias empresárias a sua criação. Construir esse ambiente favorável ao empreendedorismo vai ficando mais difícil a cada geração porque as famílias vão consolidando modelos de sucesso – criando o paradigma de que eles não podem ser mudados – e ampliando a zona de conforto, patamares e níveis de vida que não trazem o desafio natural da sobrevivência, o que pode gerar acomodação e até o receio de arriscar-se em novos projetos. A maioria dos fundadores que conhecemos, e cujas empresas já estão sendo administradas pela segunda ou terceira geração, tinha o posicionamento interno predominante. Eles foram imigrantes ou migrantes que buscavam sua sobrevivência e de sua família. Muitos deles abandonaram seus países e famílias de origem, fugiram de guerras e chegaram ao Brasil ou, no caso dos migrantes, a uma grande cidade, com pouquíssimo dinheiro no bolso. Algumas vezes eles chegavam apenas com o capital, que era o ofício e a determinação de ser alguém. Uma das ações que transmite esses valores é realização do resgate da história e dos desafios vividos pelas gerações anteriores. Não há dúvidas de que se tratam de histórias difíceis e dolorosas, que vão marcar a trajetória de suas famílias, de suas empresas e de seus herdeiros. É importante que as gerações posteriores conheçam essa história, pois são o marco inicial das famílias empresárias. Somente conhecendo a história de sua família é que as gerações posteriores entenderão e absorverão os valores que lhes deram origem. A transferência do DNA empreendedor para as gerações seguintes pode ser feita também com ações estruturadas. As famílias empresárias criam empreendedores estimulando-os desde a infância e também proporcionando a eles experiências de ação ou trabalhos ligados ao empreendedorismo, que podem ser exercitados dentro ou fora da empresa da família.
RAÍZES EMPREENDEDORAS Para o professor Fernando Dolabela, o estímulo ao lócus interno e à criação de empreendedores, pode e deve começar na infância. Ele criou o conceito de Pedagogia Empreendedora, voltado a crianças de 4 a 17 anos, que desenvolve o potencial dos alunos para serem empreendedores em qualquer atividade que escolherem, o que inclui ser proprietário de uma empresa, se for o caso. Com uma abordagem fortemente humanista, a metodologia desenvolvida pelo professor Dolabela elege como tema central a preparação do indivíduo para participar da construção do desenvolvimento social, basicamente a mesma função assumida pelas empresas familiares em sua fundação. Inspirada por este espírito, a höft incentiva as famílias a estabelecerem práticas que possibilitem trazer a veia empreendedora das novas gerações. Isso pode acontecer de várias formas: há, por exemplo, famílias que criam um fundo específico para empreender, com recursos que os membros do fundo podem solicitar para começar um negócio. Ele terá vantagens com isso, mas também deverá prestar contas deste capital. O modelo estimula a postura do investidor e de prestação de contas. Outras criam negócios que servirão como laboratório para os herdeiros. Uma família do interior de São Paulo teve uma experiência bem-sucedida. O fundador da companhia decidiu com seus três filhos que cada um deles teria uma verba equivalente para montar um negócio. O acordo previa que metade deste valor seria doada a cada um, e a outra metade deveria ser devolvida ao grupo à medida que os negócios progredissem. Caso os negócios não dessem certo, eles poderiam solicitar o mesmo montante inicial, para uma nova tentativa, mas aí a devolução deveria ser integral, além da metade anterior que havia sido utilizada. As experiências funcionaram: nenhum dos herdeiros precisou da segunda tentativa e o fundo recuperou 50% do valor investido nos novos negócios, que vão muito bem, gerando riqueza e desenvolvendo a capacidade de investir e administrar, além de aumentar a autoestima e a autoconfiança dos herdeiros. Experiências desse tipo podem ser estruturadas de diversas formas. É o caso de uma família empresária que definiu que seus herdeiros da terceira geração deveriam não apenas empreender, mas aprender a conviver, como sócios e executivos. Eles eram três sócios na segunda geração e, no momento de preparar a sucessão, definiram que a melhor forma colocar em prática o que aprenderam era incentivar a terceira geração, composta de 12 membros, a montar um negócio juntos. Depois de estudos de viabilidade, o grupo da terceira geração percebeu uma carência de academias de ginástica na cidade em que viviam e decidiram abrir uma. Aqui o laboratório incluiu o trabalho em grupo e foi um pré-requisito que o novo negócio seria tratado como uma empresa do grupo: a divisão dos papéis foi decidida entre eles, mas a governança seria da holding. A academia deu muito certo e, depois de atingidos os resultados pretendidos, foi vendida, o objetivo de desenvolvimento havia sido cumprido. Os herdeiros assumiram os papéis de sócios na companhia original da família, com a bagagem de já haver empreendido, administrado, prestado contas e vendido um negócio. O empreendedorismo é uma forma de enxergar o mundo, requer nossa mudança de mentalidade. •
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