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LIDERANÇA COM SOBRENOME

Além de garantir a condução e crescimento dos negócios, tornar-se o principal executivo, sendo também um membro da família empresária envolve outros desafios

Ser eficaz como o principal executivo de uma organização já é uma tarefa e tanto, em tempos de extrema competitividade. Quando se trata de uma família empresária, e a liderança é exercida por um dos descendentes, é como se houvesse uma carga extra sobre os ombros, sobretudo da segunda geração em diante. Suceder é um desafio: como ser “o próximo”? A trajetória de um empreendedor bem-sucedido equivale a uma saga, às vezes tão marcante que se torna difícil vislumbrar a continuidade, em função até de fortes traços de personalidade. O ocupante do cargo de liderança, além de manter-se preparado para administrar o negócio, precisa adquirir maestria para lidar com questões familiares e societárias. Da responsabilidade de garantir a sobrevivência da empresa a enfrentar a desconfiança por carregar o rótulo de “o filho do dono”, são várias as adversidades enfrentadas por quem chega ao topo da pirâmide organizacional de uma empresa familiar, carregando também seu sobrenome de origem. Antes de chegar ao cargo máximo, o trajeto costuma ser bastante desafiador. A começar pela própria entrada na empresa. As lembranças dos primeiros tempos de Fabrício Simões, CEO da Ubyfol, empresa do setor de agronegócio, ficaram impregnadas pelas dificuldades. “Era um contexto muito hostil, um momento de mudança. E havia muita desconfiança, o famoso ‘o filho do dono está chegando’. Foram momentos de depressão, não foram fáceis”, relata. O antídoto, ele conta, foi a conjugação do apoio dos sócios e de parte da equipe com o seu interesse em aprender sobre o funcionamento do negócio. Fabrício e a empresa que hoje preside, com sede em Uberaba (MG), são praticamente contemporâneos. A indústria foi idealizada quando Fabrício estava na barriga da mãe. Olce, pai de Fabrício, havia ganhado um carro de premiação como melhor vendedor da empresa em que trabalhava, também voltada ao agronegócio. Com a esposa grávida, decidiu vender o veículo e começar um empreendimento. Fabrício nasceu em 1984 e, no ano seguinte, a Ubyfol foi fundada. Apesar de ter passado a infância brincando entre os sacos de adubo, a chegada ao comando da Ubyfol não foi um desdobramento natural, como poderia se supor. A entrada na empresa, embora fosse uma hipótese plausível, não era pedra cantada. À época do vestibular, Fabrício conta que optou por agronomia pela proximidade com a área, mas sem pensar em sucessão. A Ubyfol foi fundada por sócios familiares e não familiares, teve variações em suas configurações societárias e, ao longo do tempo, tornou-se uma empresa exclusivamente familiar, com metade para Olce e metade para dois de seus tios, os três com idades muito próximas. Lécio que participou da sociedade desde o início. Em 2002, Olnei entrou para a sociedade com 25%. Fabrício, além de ter o desafio de pertencer à segunda geração, teria que interagir também com a geração dos irmãos de sua avó, os dois tios sócios. Formado, Fabrício ingressou na empresa em 2007. “O mercado do nosso negócio começava a crescer no agronegócio brasileiro, existia uma demanda reprimida. Comecei no departamento técnico, sem liderança, sem tomada de decisão”, recorda. Por identidade e adesão pessoal, o tema sucessão recaiu sobre Fabrício, não foi um assunto profundamente debatido ou planejado. Seu irmão Fábio construiu a carreira como médico cirurgião, e a irmã Tatiane se casou, dedicando-se à família. O sócio Lécio, com três filhos mais novos, Ana Olympia, William e Walysson, viviam a fase de graduação, e Olnei não tinha descendentes. O hoje executivo conta que sentia a pressão da profecia recorrente no ambiente de famílias empresárias de que a segunda geração chega para quebrar o que a primeira construiu. “Eu não queria carregar essa responsabilidade”, diz. Mas um sentimento falou mais alto, enquanto ele cumpria um ano de estudos, em Londres. Foi em 2008, quando eclodiu a crise financeira mundial. “Eu não podia ficar afastado no momento em que a família e a empresa estavam precisando de mim. Vi que a Ubyfol tinha de fazer parte da minha vida. Não poderia deixar o legado do meu pai sem continuidade”, explica. Encarar uma crise que põe a sobrevivência da empresa em risco também é um desafio conhecido por Peter Gottschalk Junior, da Wheaton, indústria de embalagens de vidro, com sede em São Bernardo do Campo (SP). No início da década de 1990, ele foi chamado pelo pai, Peter Gottschalk, que havia adquirido a empresa de um grupo norte-americano, na qual era executivo desde 1952. Com a mudança de papel, em 1990, decidiu que era hora de convocar o filho. “Meu pai já estava um pouco cansado. Eu cheguei a trabalhar um tempo com ele. Minha entrada foi de supetão, sem preparo, sem planejamento nenhum. Dei sorte, não só por causa de alguns eventos, mas pela turma que estava aqui e conseguimos fazer uma transição razoavelmente boa”, comenta Peter Junior, que entrou como gerente nacional da empresa. O momento dramático aconteceu em 1997, quando houve um incêndio na fábrica. “Entramos numa crise muito grande. Mas eu consegui achar algumas maneiras de ir tocando o negócio para que a gente sobrevivesse. Nessa época, eu ingressei na direção da empresa, junto com meu pai e com um diretor financeiro. Em 2000, esse diretor ficou doente e o meu pai cansou. Ficou junto, mas o negócio estava mais comigo mesmo”, conta Peter Junior. Quase 30 anos depois do chamado de seu pai, Peter Junior está concluindo a transição para o filho Peter Michael Gottschalk, resultado de um planejamento de 16 anos. Se ele considera que a entrada dele na Wheaton se deu sem planejamento, não queria que a história se repetisse na segunda passagem de bastão. Mas o motivo principal para essa preocupação foi observar o que acontecia na matriz norte-americana. “Nós pudemos assistir à derrocada da empresa nos Estados Unidos, justamente por conta de briga familiar”, explica. “Começamos a aprender como não fazer. Ao ver aquilo lá, eu tinha de estudar como se faz. Por isso, a segunda transição foi totalmente planejada”, diz Peter Junior. Na visão dele, o executivo oriundo da família precisa entrar determinado a mostrar o seu valor e competência. “Eu tive oportunidade de conquistar o meu espaço, porque esse é o fator-chave nas empresas familiares”, considera Peter Junior, que diz ter encontrado resistências. “Mas, principalmente por conta da grande crise de 1997, eu tive a chance de conquistar esse espaço e o respeito da turma. E aí, depois, foi razoavelmente tranquilo”, observa. Se Peter Junior credita parte do trabalho que conseguiu realizar “à turma” que estava na empresa do pai, Fabrício também relata gratidão aos sócios que o apoiaram no começo de sua trajetória na Ubyfol. “Eles foram me inserindo em algumas reuniões, no começo como ouvinte, depois fui sendo exigido a me posicionar. Uma relação de confiança foi sendo construída com a sociedade, com a gestão. E muito também na minha vontade de querer fazer diferente, de me desgarrar dessa questão de ser filho do dono, de querer criar a minha história. Eu sempre quis ser reconhecido como qualquer outro executivo de mercado”, diz Fabrício. Um aspecto importante, em transições bem-sucedidas, é quando o sucessor percebe que precisa dedicar-se à construção da própria identidade, evitando o risco de repetir o modelo, mesmo que exitoso. Encontrar seu estilo de liderança, mantendo as diretrizes e os valores de origem. Em termos práticos, essa busca era viabilizada pela passagem pelos setores da companhia, ao mesmo passo em que ia aprimorando sua formação executiva. “Fui me desenvolvendo, buscando conhecimento administrativo e trazendo para a Ubyfol. E a empresa teve seus momentos de pico e de necessidades. Ela teve um momento de necessidade de fábrica, eu fui lá e atuei efetivamente. Depois teve uma necessidade comercial, uma necessidade financeira e eu fui trabalhando a empresa como um todo, assumindo responsabilidades que não eram delegadas a mim, mas também não havia ninguém olhando. Eu entendia que os sócios estavam olhando que eu estava olhando. Então, essa relação de confiança foi sendo conquistada e eles foram delegando decisões”, relembra. Conforme aumentava seu entendimento da operação, maior era a contribuição. Consequentemente, a confiança dos sócios também se elevava. “Eu dei início a um processo de automação industrial, de modernização de fábrica, de reorientação de preços, comecei a alterar a estrutura administrativa-organizacional, a parte de logística, operacional, comercial”, enumera. Passar por todos os setores da empresa também fez parte da formação de Peter Michael, da terceira geração da Wheaton. “Ele começou por baixo, com funções técnicas e sofisticadas, como auxiliar para que pudesse montar algo que fosse de sua própria autoria”, explica o pai. “E, a cada passo, a gente aumentava a responsabilidade e a quantidade de comandados. Isso desde o começo, quando ele fazia um programa de logística, que era sofisticado, até tocar uma parte da empresa, com 900 funcionários. A cada etapa, ele foi se provando. Passando por todos os setores: administração, fabricação, vendas.” Logo que começou o estágio na empresa, Peter Michael conta ter sentido uma dose de descrença por parte de algumas pessoas. “Quando entrei, tinha aquela desconfiança: ‘o que esse moleque está fazendo aqui?’ Mas tive pouca dificuldade, senti muito pouco o peso do sobrenome”, diz. Ele atribui essa quebra de barreira ao fato de ser bastante comunicativo, além de demonstrar interesse em conhecer a dinâmica da empresa. “Quando era estagiário, decidi trabalhar três meses à noite, para conhecer o pessoal. E passei por todas as áreas: produção, planejamento, logística.” Tornar-se CEO era uma hipótese muito distante para Peter Michael, que entrou na empresa ainda alimentando o sonho de fazer carreira no automobilismo. “Eu estava focado na carreira de piloto. Vim fazer estágio, no primeiro ano da faculdade de administração, mas logo fui pegando gosto. Nunca fiquei pensando muito ‘vou ser presidente’, estava focado nos meus desafios diários, em crescer por mérito”, conta. Com uma distância na faixa etária em relação a irmã e primos, foi o candidato natural à sucessão. Outra questão que precisa ser administrada com esmero pelo executivo familiar é a tomada de decisões em prol da sociedade, com embasamento e qualidade de informações. Um líder que pratica a visão coletiva preserva o patrimônio. “Isso traz um desgaste emocional para o sucessor familiar. Eu tenho de conciliar os interesses dos tios e sobrinhos, tenho de ter um cuidado para que a outra parte não me veja beneficiando o laço paterno. Isso para mim sempre foi uma questão muito forte. Eu sou filho, mas sempre demonstrei uma responsabilidade perante a sociedade, independentemente de ser meu pai ou meu tio”, conta Fabrício. À medida que foi deixando as áreas mais técnicas e se aprofundando na gestão, Fabrício deparou com desafios, quando as mudanças se fizeram necessárias. “Eu tinha de respeitar a cultura da empresa, qualquer processo fora disso poderia ferir valores e gerar desgastes com a sociedade. Então, eu tinha de fazer mudanças na empresa, preservando valores e as pessoas”, conta. Um momento especialmente delicado foi quando precisou fazer modificações na área administrativa. “A equipe havia começado com o meu pai e com o meu tio, mas os processos não iam para frente. Havia dificuldades financeiras e a empresa quase veio à falência em 2013. Nesse contexto, eu pensei ‘se eu não posso mexer, tenho de trazer pessoas da minha confiança para poder trabalhar de maneira mais organizada’. Fui trazendo pessoas para as áreas e houve uma mudança muito forte nessa época. A empresa começou a melhorar processos, a ter procedimentos padrões, a ter um viés mais de qualidade, a ter uma competitividade maior no mercado. Isso trouxe crescimento e novos desafios”, afirma. As pessoas que trouxeram novos ares à companhia, também demandavam uma nova postura de Fabrício. “Uma nova equipe exigia de mim um posicionamento diferente e eu ainda estava preso no passado. Mas, ao mesmo tempo, eram pessoas que estavam mudando o comportamento na empresa”, diz. Nesse período de transição, Fabrício sentia que nem sempre tomava as melhores decisões. Ainda em 2013, resolveu investir em autoconhecimento. “Busquei pela primeira vez um profissional de coaching, que me auxiliou muito nesse processo. Passei a ser mais analítico, mais racional nas tomadas de decisão”. Em 2017, passou por um processo de mentoring com um executivo de renome no mercado, presidente de uma empresa de grande porte. “Foi uma grande inspiração para mim, porque eu consegui conciliar valores e resultados. E cheguei à conclusão de que não é preciso priorizar um em detrimento do outro”, analisa. Manter canais de trocas com fontes internas e externas também foi uma etapa importante, na visão de Peter Michael, em sua preparação para pegar o bastão. “Fiz vários cursos de liderança e sempre tive muito papo com os diretores, além do acompanhamento de um coach.” Ainda que o caminho até o topo da organização vá se delineando, a chegada ainda reserva algumas sensações inéditas. “Quando me vi na posição de CEO, eu pensei ‘que raio é isso?’. Porque eu não tinha experiência fora da empresa, nem referência disso na sociedade, porque os sócios eram todos empreendedores, nunca tiveram uma carreira executiva”, comenta Fabrício. A solução foi buscar ajuda nos pares do mercado. “Fui ver quem eram as grandes referências de presidentes de companhias aqui no Brasil. Fui ligando: ‘Você pode me receber aí? Eu preciso aprender, quero saber o que você faz’”, lembra. Ele conta que passou a ser reconhecido como principal executivo da da Ubyfol entre 2014 e 2015. “A empresa e o mercado foram me vendo como CEO e eu aceitei esse chapéu. Essa posição ficou consolidada. Não juridicamente, mas legitimada”, explica. O caminho para a legitimidade pode passar por longos períodos de responsabilidade acumulada sem o devido reconhecimento, seja em cargo ou em remuneração. Daí a importância de persistir e negociar a cada passo do processo. Atualmente faz parte da pauta de Fabrício, em conjunto com a família, a entrada de novos membros, de maneira estruturada. Tatiane já ocupa espaço na gestão, Ana Olympia cumpre estágio e William se prepara em estágios em outras empresas. Algo semelhante acontece atualmente com Peter Michael, que é vice-presidente executivo, mas já tem incumbências de principal executivo da Wheaton. Ele também notou a especificidade do momento da chegada à função. “Passei por todos os cargos, desde estagiário até diretor. A responsabilidade é absurdamente maior quando você passa de diretor a presidente do que quando passa de gerente a diretor, por exemplo. Porque você vira a última instância”, conta. Mas chama a atenção para o aspecto positivo. “Você tem a chance de fazer grandes feitos.” E diz que o fato de ser de origem familiar confere uma responsabilidade a mais. “Um CEO contratado não tem um vínculo tão grande. Quando você é da família, é diferente, porque a família inteira vive disso. Se der um problema, impacta todo mundo”, analisa. Para transmitir a ideia do que passa um CEO familiar, Fabrício evoca uma imagem para ilustrar a complexidade da situação: “Ser um executivo familiar é como guiar um carro com cada roda girando numa velocidade diferente. Tem a velocidade da empresa, a velocidade com que o mercado te cobra, a velocidade da família e a velocidade dos sócios.” Com todas essas variáveis, é preciso seguir adiante, pois ser uma família empresária requer bons familiares e também bons executivos. •

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