O que há por trás de iniciativas sociais bem sucedidas? Acima de tudo, determinação e a vontade de fazer com que suas causas se perpetuem. O Brasil conta hoje com dois exemplos de empreendedoras sociais de origens distintas, mas com um tremendo gosto pelo desafio. Ana Lúcia Villela, do Instituto Alana e Verônica Del Gragnano Stasiak, da Unidos pela Vida - Instituto de divulgação da Fibrose Cística.
Ana Lúcia, membro da 4ª geração do Grupo Itausa, e o irmão, Alfredo Egydio Arruda Villela, são os maiores acionistas do grupo. Apresentado assim, o perfil remete a uma imagem que em nada se parece com a Ana Lúcia real.
Formada em pedagogia e com mestrado em psicologia pela PUC-SP, Ana Lúcia participa de conselhos de instituições, mas sua menina dos olhos é mesmo o Instituto Alana, fusão dos nomes Alfredo e Ana, uma ONG que fundou com o irmão em 1994. Ali eles incubam iniciativas em várias áreas, tendo como fio condutor a missão de "honrar a criança" e como pilares a comunicação, a inovação e o advocacy, ou ativismo político.
Entre a herdeira de um grande conglomerado e a empresária social, o caminho trilhado por Ana Lúcia teve um marco: em 1982, seus pais - Alfredo e Maria Sílvia - morreram em um acidente aéreo. Ana Lúcia, então com oito anos, e o irmão, com 11, foram criados pela tia. "Não tive meus pais para me orientar e me mostrar como me relacionar com os negócios. Por outro lado, o fato de eu ser uma criança órfã me deixou mais sensível às questões sociais, às coisas que aconteciam à minha volta, especialmente as crianças. Eu sabia que era privilegiada por ter uma família que cuidava de mim, e me preocupava com aqueles que não tinham", lembra.
Sua experiência pessoal fez com que se colocasse no lugar de crianças que não tinham pai, mãe ou outros parentes, e sua curiosidade cedo fez com que descobrisse o que era a Febem, as Casas Abrigo e outras iniciativas do gênero. Na pré-adolescência, ela e o irmão, conscientes de que eram herdeiros, decidiram que fariam algo pelas crianças como eles. "Isso influenciou minha escolha de profissão. Eu sabia que aos 21 anos eu não teria mais um tutor e que teria que conhecer minhas empresas, e sabia também o que eu gostava e queria fazer", diz.
A escolha do curso de Pedagogia foi pessoal, e veio acompanhada de uma decisão quase familiar: o curso de Administração. Ana Lúcia fez os dois, mas com o coração sempre voltado para a educação. Já com 15 anos ela fazia estágio em escolas e, quando entrou na faculdade, aos 19, já acumulava bastante experiência com trabalhos sociais com crianças carentes. Esse foco se manteve durante a faculdade, quando fez estágio e trabalhou em escolas públicas.
Quando chegou à maioridade, foi convidada para participar do Conselho do grupo Itausa. "Na mesma época meu irmão e eu decidimos construir o Alana", afirma. O projeto começou aos poucos. Primeiro, com os dois trabalhando como voluntários em um projeto social em São Paulo. O projeto próprio veio em 1994: um terreno que pertencia aos dois, na zona leste de São Paulo, havia sido ocupado por 15 mil famílias. Ao invés de expulsá-las, os irmãos as acolheram. Ali nasceram o Instituto Alana e o Jardim Pantanal.
"Não deixei de estar no banco, de cuidar dos negócios junto com meus tios e meu irmão", diz. A rotina incluía faculdades durante o dia, função empresarial a noite e, aos finais de semana, as atividades do Alana. O contato diário com realidades tão distintas ajudou a reforçar sua verdadeira vocação. "Ficou muito mais claro quando entrei para o conselho que meu papel não era de executiva do banco ou da Duratex. Eu tinha um desejo forte de aprender e passar por vários lugares, me sentir segura e, se fosse o caso, entrar para o grupo de alguma forma. Sempre me vi como sócia, não como executiva", afirma.
O Alana Em São Paulo, o Alana começou como um projeto social voltado ao apoio das crianças no Jardim Pantanal. Era um projeto social com creche, atendimento a idosos, formação de lideranças comunitárias, etc. O projeto permaneceu assim por 10 anos, mas a experiência e a percepção de que o Alana poderia ampliar sua atuação o fizeram crescer. Em 2006, Ana Lucia criou o projeto Criança e Consumo ao lado de uma equipe que ela montou para pautar essa discussão na sociedade brasileira - inexistente na época. Desde então, outros projetos surgiram, a equipe foi ampliada e o Alana se desenvolveu.
O Alana trabalha para encontrar caminhos transformadores para as novas gerações, buscando um mundo sustentável e de excelentes relações humanas. Para tanto, estruturou-se em três frentes: o Instituto Alana, o AlanaLab e a Alana Foundation.
O Instituto Alana é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que reúne os projetos voltados à busca pela garantia de condições para a vivência plena da infância. Criado em 1994, o Instituto conta hoje com projetos próprios e com parceiros e é mantido pelos rendimentos de um fundo patrimonial desde 2013.
O AlanaLab é o núcleo de negócios do Alana, que busca transformação social por meio do investimento em empresas e iniciativas de comunicação de impacto. Criado em 2014, participa na gestão das empresas da organização, das quais também é sócio como a produtora Maria Farinha Filmes, a distribuidora cultural Flow e a produtora de realidade estendida Junglebee.
Já a Alana Foundation, baseada nos Estados Unidos e totalmente filantrópica, foi criada para investir em pesquisas de ponta, inovadoras e capazes de transformar o mundo. Atualmente, são apoiados pela fundação projetos de pesquisa na área de síndrome de Down em parceria com a Case Western University e o MIT - ambos trabalhando juntos, para potencializar os resultados a partir do que cada um tem de melhor. "Nós acreditamos nesse fazer conjunto e é muito gratificante encontrar parceiros de peso como essas duas universidades, que topam o risco e se reinventam em prol de um bem maior", comemora Ana.
As atividades no Jardim Pantanal mudaram de identidade. O Espaço Alana - uma praça projetada pelo arquiteto Rodrigo Ohtake, conta também com a sala-sede da associação de moradores do bairro. Os funcionários do Alana, que trabalham na região tem como objetivo auxiliar os líderes locais nas articulações com o poder público, para que a comunidade seja cada vez mais forte. No escritório em São Paulo, as pessoas trabalham nos demais projetos - e na criação de novos.
Independência Um dos grandes diferenciais do instituto, ressaltado pela própria Ana Lúcia, é a independência. "O que eu acho legal de ter dinheiro é poder fazer aquilo que ninguém faria, como o projeto Criança e Consumo. No começo fomos atacados porque diziam que queríamos acabar com as agências de publicidade", revela, reforçando o fato de trabalhar com causas extremamente importantes em que poucas empresas podem, por estarem comprometidas de alguma forma. "Aqui podemos ser ousados e trabalhar com questões seríssimas, sem a preocupação de sermos retaliados", provoca.
Graças a esta postura, o Alana tem grande representatividade não apenas no Brasil. A instituição já apresentou um projeto falando do impacto negativo da publicidade para as crianças na OEA (Organização dos Estados Americanos) e, na ONU (Organização das Nações Unidas), apresentou um estudo mostrando como as pessoas com síndrome de Down têm impacto positivo na saúde organizacional das empresas que as contratam.
O sucesso de seus projetos fez com que Ana Lúcia encorajasse outros herdeiros a fazer o mesmo. Ela fez parte de alguns grupos de herdeiros e acompanhou de perto outras experiências de endowment* ao redor do mundo. "Não é comum no Brasil, mas decidi fazer assim mesmo. Está mais próximo de ser quem eu sou e faz sentido financeiro e social", diz.
Ela reconhece que o dinheiro ajuda muito, mas que ele precisa vir acompanhado de boas ideias e de vontade de fazer as coisas acontecerem. O Alana serviu de inspiração para outras iniciativas. Muitas ONGs nasceram ali e muitos profissionais se inspiraram em seu trabalho.
Empresa e família
A atuação social de Ana Lúcia deu a ela uma visão de mundo, e de negócios, que complementa a dos demais membros da família, que a procuram para conhecer seu trabalho. Fora da gestão das empresas, ela reconhece que sua contribuição nesse sentido é outra: em 2014, por exemplo, ela foi convidada a integrar o Comitê de Sustentabilidade da Duratex, uma das empresas do grupo. Para ela, é prazeroso fazer esta construção e ligar mundos que, em princípio, pareciam tão distantes. "Eu polarizava muito essas minhas duas vidas. Também aumentou meu respeito pelos familiares que estão nas empresas", reconhece.
Mais que isso, ela se descobriu mais próxima do Grupo Itausa e da família. Estudando sua árvore genealógica, por exemplo, Ana Lúcia descobriu que sua bisavó e sua avó já traziam preocupações como as suas. Nas reuniões do conselho, ela percebeu como os membros se respeitavam e trocavam experiências.
Há alguns anos houve a criação do conselho familiar, que reuniu cerca de 60 membros das famílias Setúbal e Villela. "Quando fomos escolher o coordenador, quase todos votaram em mim. Ali eu percebi o respeito que eles tinham pelo Alana", diz, ressaltando a riqueza de experiência que foi a construção do conselho do zero: foi preciso amarrar formação, valores, intersecção de família e negócios. "Cresci muito ali e acho que por isso assinamos o acordo com os Moreira Salles tão rapidamente: todos confiávamos uns nos outros, isso porque temos valores muito claros. Esta é a base do Alana, do grupo e de todos nós", revela.
Por tudo isso, Ana Lúcia defende que todo herdeiro deveria participar ou criar conselhos. São iniciativas que, de acordo com ela, dão uma força sem igual à família. "Ter discussões de forma aberta e clara ajuda muito. Nem todos querem participar, mas todos serão sócios e precisam entender o que a família construiu. E quando se colocam na mesa para conversar, todos agregam", conclui.
Movida pelo otimismo É sempre bom ressaltar que a motivação para colocar em pé iniciativas sociais de sucesso independe da condição social de seus idealizadores. A força que deu origem ao Alana também pode ser vista no Unidos pela Vida - Instituto de Divulgação da Fibrose Cística. A psicóloga Verônica Del Gragnano Stasiak, não é herdeira. Em 2009, então com 22 anos, ela foi diagnosticada com fibrose cística, uma enfermidade genética, sem cura, de origem europeia, pouco presente nos africanos e praticamente ausente nos asiáticos, que torna toda a secreção do organismo grossa, pegajosa e de difícil eliminação. Como consequência, há danos aos aparelhos respiratório, digestivo e reprodutivo. E o assustador: os acometidos pela moléstia têm expectativa de vida média de 35 anos, e que nos anos 50 não passavam dos 2 anos.
Quando ouviu falar de fibrose cística pela primeira vez, Verônica respirava por aparelhos havia 60 dias, 32 deles no hospital. Ela enfrentava mais uma de sua coleção de aproximadamente 70 pneumonias. Aos 23 anos, havia perdido a vesícula e dois terços do pulmão direito. O pâncreas funcionava a 40% de sua capacidade. Doses cavalares de corticoides tinham corroído seu esqueleto e rendido fraturas no cóccix e na cabeça do fêmur direito. Verônica não sentiu raiva da doença, tampouco se fez de vítima dela. Sabendo o que era a doença, ela poderia buscar a forma adequada de tratá-la.
Motivada por um sonho que teve no leito do hospital, decidiu escrever um blog. Na cama do hospital publicou os primeiros posts do Respirando com Amor, hoje desativado, mas que já naquele momento conseguiu atingir seu objetivo em ajudar a algumas mães que como a sua ou ela mesma não conheciam nada sobre a doença.
Após quatro meses, o desejo de divulgar a fibrose cística transformou o blog no site unidospelavidafc.com.br e em comunidades nas redes sociais. Um ano depois, o Unidos pela Vida foi transformado em ONG - unidospelavida.org.br, que tem como propósito a divulgação da fibrose cística no Brasil. Afora a divulgação online, Verônica dá palestras ao público em geral e profissionais da saúde, desmistificando a doença, promovendo o diagnóstico precoce e divulgando seus tratamentos, seus grandes objetivos hoje.
Mais de 2 mil pessoas no Brasil e no exterior a ouviram discorrer sobre os sintomas da enfermidade (pneumonia de repetição, tosse crônica, diarreia, pólipos nasais, dificuldade para ganhar peso e estatura, além do suor mais salgado que o normal). A luta é pelo diagnóstico precoce, feito na terceira fase do teste do pezinho. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) cobre somente as duas primeiras etapas do exame, exceto alguns estados que oferecem a versão ampliada.
Reconhecimento O trabalho que Verônica iniciou sozinha, em muito pouco tempo recebeu reconhecimento. O Unidos pela Vida já recebeu o Selo Objetivos do Milênio, concedido pelo Sesi do Paraná em reconhecimento às instituições que desenvolvem projetos em prol dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e contribuem para o desenvolvimento local. Entre os objetivos atendidos pelo instituto, estão a redução em dois terços da mortalidade de crianças menores de 5 anos e o combate e reversão da propagação de doenças.
O instituto também foi uma das 36 organizações não-governamentais selecionadas para a segunda edição do Projeto Legado. Ali, seus membros receberam mais de 80 horas de capacitação. Ao final do programa, o Unidos pela Vida ficou entre os quatro melhores projetos apresentados, recebendo investimento para a expansão do Projeto Fibrose Cística nas Universidades em 2015.
Por estas iniciativas, entre tantas outras, ele recebeu o selo "Blog Amigo da Saúde", concedido pelo Ministério da Saúde às iniciativas que geram conteúdo sobre saúde na internet, aproximando a população dos canais abertos de informação. O esforço pessoal de Verônica também foi reconhecido: ela foi a segunda colocada em votação aberta ao público do prêmio "Elas Fazem 2014", promovido pelo grupo Gonzaga, de Curitiba. O prêmio reconhece e destina investimentos a projetos sociais liderados por mulheres na capital paranaense. A lição que fica das iniciativas destas duas mulheres é que o dinheiro é necessário para fazer o bem, mas ele não é o fim. O trabalho de Ana Lúcia e de Verônica deixa claro que ele é apenas o meio pelo qual a vontade de pessoas como elas mostram resultados. E não são poucos.
*o que é endowment O endowment consiste na criação de um patrimônio perpétuo que gera recursos contínuos para a conservação, expansão e promoção de uma determinada atividade, por meio da utilização dos rendimentos desse patrimônio. A geração contínua de recursos diferencia o endowment de formas tradicionais de filantropia, as quais envolvem tipicamente a doação de recursos para um objetivo pré-determinado como a construção de um laboratório para pesquisas, a reforma de uma instalação específica, a implementação de um determinado projeto.
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