Elas ganharam mais espaço nos negócios e, ao longo dos anos, firmaram seu lugar na governança invisível, mas ainda há muito a ser conquistado
O ano era 1805, na França, e aos 27 anos Barbe-Nicole perdeu seu marido, François Clicquot, um promissor fabricante de vinhos. Numa época em que as mulheres anão desempenhavam qualquer papel empresarial, a viúva Clicquot, sozinha e com uma filha para criar, assume os negócios e, a partir de então, empreende uma transformação. Ela aperfeiçoa as técnicas de produção da bebida ganhando respeito entre os produtores da região, contrariando todas as expectativas sobre sua trajetória. Ao mesmo tempo começa a perceber o sucesso do champanhe entre soldados estrangeiros e estrategicamente passa a enviar caixas da bebida para degustação em diversos países da Europa, como Rússia e Polônia. Desta forma, a viúva vai transformando um hábito local, considerado excêntrico, em algo global. Pelas mãos de Barbe-Nicole, a Veuve Clicquot se torna uma marca icônica.
Mais de 200 anos depois, as mulheres mudaram gradualmente seu papel social. No mundo dos negócios, elas estão cada vez mais presentes, buscando seu espaço e seu estilo próprio. Nas famílias empresárias, o cenário não poderia ser diferente, e até por algumas características específicas, os papéis de liderança feminina parecem avançar, com taxas acima da média de mercado. “Hoje, elas podem ocupar desde a presidência de uma empresa até a liderança influenciadora dos destinos da família e dos negócios”, diz Denise Kenyon-Rouvinez, PhD líder da cátedra de Empresas Familiares na IMD Business School, Suíça.
Uma prova da forte representação feminina são pesquisas globais que indicam uma presença maior, e crescente a cada ano, de mulheres no ensino superior, representando mais da metade dos universitários. Além disso, também se confirmam que são as mulheres que se apresentam ao mercado de trabalho com mais tempo de estudo. No entanto, mesmo assim, há um caminho a ser percorrido quando avançamos na hierarquia – elas ainda são minoria como líderes.
Da governança invisível para a visível
Nas empresas familiares, parece existir uma tradição que leva os homens a se envolverem com os negócios, quase como uma força do destino ou da expectativa, deixando às mulheres o papel de suporte. Em geral, elas não têm grande incentivo para investir no planejamento de sua carreira, sendo desde muito cedo encorajadas a perseguir objetivos considerados femininos ou a buscar sua realização em papéis paralelos. Nesse contexto, em que existe uma mescla da cultura familiar tradicional e da expectativa social, ter uma filha como sucessora executiva costuma ser visto como uma quebra de paradigma, quase como uma alternativa para quando não há outra escolha.
A premissa, em geral, é de que as mulheres construam a sua identidade de acordo com a tradição, sejam as responsáveis pela família e pelo cuidado com a casa, marido e filhos. Também é esperado delas, em muitas culturas, que priorizem a carreira de seus maridos, o que as leva a deixar sua própria trajetória profissional em segundo plano. Assim, pareceria incomum vê-las em papéis ligados à gestão. “As mulheres exerceram um papel histórico no desenvolvimento das famílias empresárias, mas durante muito tempo, esse papel foi invisível”, diz Denise. O cenário vem mudando, pois apesar de não estarem ocupando os cargos de liderança, a influência das mulheres nos destinos de muitas famílias empresárias tem sido fundamental.
Um exemplo de quebra de paradigma foi Katherine Meyer Graham, a primeira CEO mulher a figurar na lista da Fortune 500. Nos anos 1970, ela assumiu a direção do jornal Washington Post, construído por seu pai, Eugene Meyer. Ele chegou a passar a liderança para seu genro, Philip, que ficou à frente do negócio por alguns anos, mas faleceu. Com a morte do marido, Katherine assumiu a liderança do negócio, que viria a se transformar em um conglomerado de mídia. O Washington Post, sob sua gestão, teve um papel primordial ao revelar o escândalo de Watergate, que levou à renúncia do presidente Nixon. Na época em que assumiu os negócios, ela chegou a ser alertada por amigos para que deixasse a empresa, mas decidiu que devia aceitar a tarefa, por seus filhos.
Quem também fez diferença no negócio da família foi Marilyn Carlson Nelson, que, junto com sua irmã Barbara Carlson Gage, herdou do pai a Carlson, uma grande rede que opera os hotéis da bandeira Radisson e os restaurantes TGI Friday´s, uma companhia fundada nos anos 1930. Ainda que o patriarca lamentasse não ter herdeiros homens que o pudessem suceder na empresa familiar, ele ensinou às filhas lições sobre mercado, negócios e liderança. Marilyn contou, em conferências sobre negócios, que seu pai comandou a empresa até os 84 anos; e quando foi a vez de ela se tornar CEO, teve que prometer ao Conselho de Administração que faria um plano de sucessão, concordando em permanecer por 10 anos. Apesar disso, o tempo, segundo ela, seria suficiente para construir aquilo que considerava fundamental numa companhia: uma cultura. Marilyn construiu uma carreira muito além das empresas fundadas por seu pai; foi membro de diversos Conselhos de Administração de grandes companhias globais e, por seu trabalho no campo da responsabilidade social, foi convidada a se tornar conselheira das Nações Unidas. Hoje, Diana Nelson, filha de Marilyn, exerce a função de CEO da empresa familiar.
Outro exemplo de quem também rompeu com essa percepção foi a baronesa Philippine de Rothschild, que atuou como uma liderança transformadora. Sua carreira culminou na Presidência do Conselho de Administração da empresa familiar Baron Philippe de Rothschild, que produz e comercializa vinhos que se tornaram referência na região de Bordeaux, França, além de administrar vinhedos na Califórnia, EUA e Chile. Ela assumiu os negócios em 1988, após a morte de seu pai, um membro da quarta geração da emblemática família empresária Rothschild, que construiu sua fortuna no setor financeiro. Antes, havia mantido uma bem-sucedida carreira de atriz durante 30 anos, utilizando um nome artístico, para que não fosse associada à raiz da família.
Conhecida como “La Grande Dame” de Bordeaux, a baronesa é autora da célebre frase: “Fazer vinho é um negócio razoavelmente simples. Difícil são só os primeiros 200 anos”. A afirmação, que se refere à qualidade do produto final, numa trajetória de muito cuidado, passado de geração para geração, pode significar uma metáfora para a continuidade. É preciso cuidar muito bem das raízes, para ter possibilidade de crescer com estrutura. E esta parece ser a grande contribuição da liderança feminina.
A perspectiva, considerando-se uma família empresária, é de que a liderança seja cada vez menos uma tarefa individual e passe a ser um desafio coletivo. Para isso, o reconhecimento da contribuição feminina pode ser um diferencial. Desenvolver uma dinâmica de trabalho em equipe, que valoriza as distintas contribuições, de homens e mulheres, trará ganhos para todos. Só basta, como afirma Denise, encorajar e apoiar as mulheres que pertencem às famílias empresárias para quem possam encontrar o equilíbrio entre o trabalho e seus papéis sociais. Assim, todos saem ganhando: a família e os negócios familiares.
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