Como o que ouvimos na cultura familiar desde a infância pode refletir em nosso futuro
"A gente escuta muitas palavras que não percebe o quanto marcam e depois, lá na frente, a gente vai entender por que a gente se tornou o que se tornou.”
“Engolir o choro, não expressar seus sentimentos, porque ‘você é crescido, tem de lidar com seus próprios sentimentos, porque você é forte e você é menino’. Foi horrível ouvir isso na minha infância.”
“A gente tem a imagem de que a mulher é emocional e o homem é racional. Na verdade, todo mundo tem tudo. Precisa ter tudo, inclusive...”
Falas, como estas, fazem parte do documentário #repenseoelogio, realizado pela diretora Estella Renner para o Instituto Avon. Ao entrevistar pessoas nas ruas, famílias em suas casas ou formar grupos de estudantes adolescentes e jovens, a obra propõe reflexões sobre o poder da palavra na construção dos nossos caminhos. Principalmente nas palavras que marcaram nossa origem, e podem representar alternativas de crescimento ou limitações. Ao colher depoimentos de diversas pessoas em realidades distintas, o documentário traz à tona alguns padrões da sociedade, muitas vezes cultivados desde a infância.
Os desdobramentos do que ouvimos desde cedo se manifestam ao longo da vida, nos diversos contextos. “A criança forma identidade se vendo no olhar do adulto”, explica a psicóloga Rosely Gomes à revista Gerações. “Ela faz uma gracinha e a gente aprova, olhando, rindo. Ela vê que aquilo fez sucesso. Da outra vez que quiser agradar, ela vai repetir, pois já tem isso no repertório. Da mesma forma, se o adulto olha feio, se tem uma reação tensa, ela fica tensa também. Então, ela sabe que não era para fazer. Isso, antes da palavra. Com a palavra, isso se acentua, porque confirma a impressão que a criança tem de como ela é vista.”
A entrada da palavra é mais um código que a criança acrescenta à compreensão de si mesma. “Quando alguém diz ‘que bonitinha’, confirma para ela que aquilo é aceitável, bom e desejável. A criança, que forma identidade a partir de como ela é vista, também forma identidade a partir de como ela é falada”, diz Rosely. Ela acrescenta que a fala vem acompanhada de outros elementos, como linguagem corporal e outros sinais que são captados pela criança.
A psicóloga comenta que os elogios também podem servir como forma de repressão. “Se quero que algo seja de um determinado jeito, eu chego: ‘Ah, agora sim. Agora você acertou’. ‘A mamãe gosta assim’. ‘Agora o papai ficou contente’. Tenha o adulto intenção ou não, ele acaba manipulando com o elogio. Porque a criança sente que não pode sair daquilo, porque daquele jeito ela é apreciada. No elogio tem a repressão de ‘eu quero que você seja assim’”, analisa.
Uma das chamadas para a divulgação do documentário #repenseoelogio, afirma: “Maravilhoso! Elogiar nossas filhas e filhos é um ato de amor e todos os elogios são válidos. O documentário que idealizamos procura mostrar que podemos ampliar esses elogios e fazer das palavras instrumentos que podem tornar a sociedade mais justa e igualitária.” Prestar mais atenção a nossas palavras nos ajuda a tomarmos consciência daquilo que recebemos e do que estamos oferecendo às próximas gerações, o que, segundo a proposta, pode determinar as pessoas que estamos criando para o futuro.
Outro aspecto levantado por Rosely é que, sob o pretexto de elevar a autoestima dos filhos, o elogio excessivo e frequente pode causar danos na vida adulta. “Hoje tem essa coisa de ‘ah, tem de elogiar os filhos’ e aí surgem os narcisistas de plantão. Todo mundo elogia tanto que eles ‘se acham’. Quando chegam no mercado de trabalho, descobrem que não são tudo isso”, diz.
No contexto da família empresária, as palavras ouvidas desde a infância também podem causar impactos nas gerações mais novas, sobretudo quando existe uma pressão para dar sequência a modelos bem-sucedidos. “Quando a família traz um forte modelo de sucesso parece aumentar o peso das palavras e dos modelos já comprovados”, diz Renata Bernhoeft, consultora e sócia da höft. “As famílias, muitas vezes, podem utilizar carimbos que definem o papel de cada um, e isso pode ter um efeito paralisante em alguns casos.”
Para Rosely Gomes, os pais precisam ter consciência do valor que atribuem aos gêneros. “As novas gerações discutem esses assuntos na escola, em outros meios sociais e isso tem trazido transformações mais rápidas”, conta. Ainda que haja mudanças em curso, alguns estereótipos persistem, como o da princesa, elogio frequentemente endereçado às meninas. “A princesa não existe por si em nenhum conto de fadas. Ela está sempre à espera de um príncipe que a justifique. Ou seja, ela não tem um valor em si. O valor é atribuído por um homem que a escolhe”, observa.
De acordo com Renata Bernhoeft, há uma renegociação de papéis sendo estabelecida.“Em geral, nas famílias empresárias, as herdeiras declaram que o modelo feminino está ligado ao papel da mulher na perspectiva conservadora, uma esposa que dá suporte ao marido, cuida da educação e formação dos filhos, mantém a casa e a vida pessoal dos familiares organizada, e está disponível para acompanhar seu marido no que for necessário para o desempenho de sua carreira. Já o modelo que vem surgindo, com a mudança da estrutura familiar, requer uma reflexão, que envolve repensar o papel de cada um, homem ou mulher, numa perspectiva de aceitação das particularidades e atitude cooperativa”, analisa.
Esse novo modelo tem reflexos bem claros no mundo empresarial. Não é casual, e tem se tornado cada vez mais comum a liderança dos negócios ser composta por homens e mulheres. “O desafio atual das mulheres, em seu papel executivo, é encontrar um equilíbrio. Um estilo que busque unir as características de maior sensibilidade, com a firmeza necessária para liderar, utilizando os aspectos positivos de ambos os lados”, diz Renata.
No lado masculino também tem havido mudanças. “O exercício da liderança tem se transformado ao longo do tempo. Parte do desafio dos homens também é incorporar um estilo mais participativo e sensível às necessidades das pessoas, aspectos que tendem a ser vistos como essencialmente femininos”, aponta a consultora.
Na visão de Rosely, essa nova configuração se viabiliza por uma complementaridade. “Feminino e masculino são diferentes de homem e mulher. O feminino habita o homem e a mulher. O masculino habita o homem e a mulher. É da junção dessas forças de masculino e feminino que nasce o novo”, analisa.
Cuidar da linguagem utilizada na formação das futuras gerações é uma atribuição das famílias empresárias. “A premissa de futuro implica trabalhar nas características necessárias para o exercício da liderança, o que engloba aspectos historicamente classificados como masculinos ou femininos. Torna-se relevante, nas famílias, permanecermos mais atentos aos rótulos que estamos colocando, quando classificamos as competências, dissociando da ideia de gênero, e deixando que se manifestem de maneira mais completa e integrada”, diz Renata.
A consultora aponta em que sentido esse trabalho deve ser feito. “Valorizar cada um, com sua contribuição específica, independentemente de gênero, pressupõe que podemos compartilhar as responsabilidades, mas principalmente negociar nosso papel. Exercer o seu melhor, descobrir seus pontos fortes, e compor equipes multidisciplinares será o grande diferencial competitivo, uma nova mentalidade que começa nas famílias e agrega valor às empresas”, conclui. •
Cuidar da linguagem utilizada na formação das futuras gerações é uma atribuição das famílias empresárias
A MEDIDA DO ELOGIO
Se o que ouvimos desde a primeira infância tem a capacidade de nos marcar no decorrer da vida, que aspectos devem ser refletidos quando se trata de elogiar uma criança?
De acordo com a psicóloga Rosely Gomes, elogiar sem critério pode gerar pessoas despreparadas para lidar com reveses. “É o excesso de autoestima. A pessoa não sabe as reais capacidades e, ao se confrontar com o mundo, fica surpresa ao saber quanta gente melhor que ela existe. Aquele mundinho dos pais para avaliá-la era pequeno. O risco é despreparar a criança, o adolescente, o jovem para uma vida real”, comenta. Em alguns casos, o elogio desmesurado, com postagens em redes sociais de qualquer coisa que os filhos façam, diz mais sobre os próprios pais. “É uma forma de narcisismo dos pais como que dizendo ‘olha como o meu filho é o máximo’”, explica.
No outro extremo, estão os pais que, sob o argumento de serem disciplinadores ou exigentes, são extremamente econômicos nos elogios. O que não ajuda no desenvolvimento dos filhos. “A criança fica sem reflexo de si mesma”, conta a psicóloga.
Existem outros aspectos que permeiam a relação, como os pais que só estimulam a criança se for na direção que eles idealizaram. “Os pais tentam encaixar o filho que têm idealizado, com aquela pessoa que está ali na frente deles. ‘Você tem de ser este que está idealizado dentro de mim’”, observa.
Outro cuidado dos pais é não exacerbar o espírito competitivo dos filhos, como se operassem numa lógica de mercado. “Há pais criando pessoas para vencer adversários e fazem um treinamento caseiro disso.”
O elogio que tende a trazer estímulos positivos para o desenvolvimento, segundo a psicóloga, é aquele que for verdadeiro. “Os adultos não esperam para ver qual a habilidade real daquela criança para elogiar. Elogiam qualquer coisa. O elogio que é verdadeiro tende a cair melhor, a criança entende melhor e faz mais sentido na personalidade”, explica. O caráter específico do elogio também ajuda na compreensão. “Dizer ‘que bonito o seu desenho! Você desenha bem’, é verdadeiro e é específico. Aquela criança fez um desenho bonito.”
Outra forma de apoiar é se mostrar disponível caso o filho queira se aprimorar em alguma capacidade ou vocação. “Se essa habilidade for verdadeira, se refletir a personalidade do filho, o pai pode falar: ‘Legal que você sabe fotografar. Se você quiser aprender mais, me fala, podemos pensar num curso’”, exemplifica.
O elogio ganha tons motivadores se acontecerem mesmo em momentos de infortúnio. “Os pais podem elogiar o empenho, se viram que o filho estudou, mas, ainda assim, não foi bem naquela prova. Na seguinte, ele se sentirá mais apoiado”, afirma.
matéria publicada na revista Gerações 2018 | https://www.hoft.com/revistas
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